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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

MATÉRIA MARAVILHOSA DE UMA FACULDADE OBSERVANDO O POEMA DE FERNANDO PESSOA

DÁ A SURPRESA DE SER 

Dá a Surpresa de Ser
Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela tivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem Ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como ?

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"










análise do poema "dá a surpresa de ser"
"Dá a surpresa de ser" é um raro momento de poesia erótica que podemos achar no todo da obra de Fernando Pessoa em Português.

De facto o poeta publicou em vida alguns poemas eróticos bastante ousados, mas usou a lingua Inglesa para tal. Isto de certo modo serviu para atenuar o peso de tais obras, que permaneceram muito desconhecidas, até hoje, em Portugal, embora na altura tivessem levantado grande polémica.

Pertencendo ao Cancioneiro, este poema tinha de origem o objectivo de ser cantado. Isto é de certo modo importante, porque aligeira de certo modo a temática, pelo menos na nossa opinião.

A minha primeira reacção é considerar este poema, embora ortónimo, como falso. Tanto é assim que uma simples leitura do mesmo poderá dissipar qualquer dúvida imanente. Refere-se Pessoa a uma figura feminina, que observa atentamente, mesmo que apenas em memória? Não nos parece.

Este é certamente um momento de alto fingimento. Ousamos dizer isto? Certamente que sim, mas certamente que teremos de nos justificar.

Primeiro que tudo: é este um poema erótico?

Não.

É um poema infantil. Veremos bem isso se o lermos. Pessoa tem como temática a mulher - isso é certo - e escreve sobre o seu objecto poético, a mulher. Mas fá-lo em termos marcadamente infantis. Logo no título não há nome, mas um espanto, um deslumbramento que ameaça susto da parte do poeta. De seguida, o corpo da mulher é equiparado a várias coisas - metonímias fugidias, para um fruto, para montes, para um barco.

Logo na primeira estrofe, Pessoa comporta-se de maneira estranha. Não vemos reverência ao corpo feminino, nem o gosto particular de quem elogia. Mas antes se observa o medo de criança ao aproximar-se de um objecto adulto com o qual não tem a certeza como lidar. O "corpo meio maduro", certamente não se refere à meia idade, mas antes ao corpo de fruto, de que mais tarde Pessoa sonha tirar um "gomo".

Na estrofe seguinte, Pessoa imagina a mulher deitada e os seus seios como "montinhos que amanhecem / sem que tenha de haver madrugada". É evidente a maneira infantil como Pessoa encara o corpo voluptuoso da mulher. Encara-o, é certo, sem a volúpia que ele mesmo encerra, mas de um modo distante e comparativo. Não há desejo nem um qualquer acender de desejo sexual, mas antes um estranho e indisfarçável mal estar.

A terceira estrofe marca ainda mais esta impressão. Dá a nitida impressão de um Pessoa que vê à distância o objecto do seu poema, que o observa sabendo bem que nunca o poderá ter. Ou pelo menos ele sabe nesse momento que não é o ideal contraponto aquele corpo insinuante. Ele em si mesmo não parece achar coragem para assumir o seu desejo sexual. É como um repórter do erotismo alheio e estrangeiro.

Tudo se confirma na estrofe conclusiva. O corpo de mulher parece-lhe como um barco ou como um gomo, e ele pergunta-se a ele mesmo quando embarcará e quando vai comer. Ou seja, quando conseguirá estar com uma mulher carnalmente, fazendo seu o objecto do seu poema, tendo afinal coragem para assumir o seu próprio desejo sexual.

É este um poema erótico? Certamente que não. Tanto que será impossível a um poeta um poema erótico, sem conhecer o erotismo. A menos que faça da sua poesia um fingimento completo, um fingimento triste - como este de Pessoa. Então, e só então, este poema poderá ser um poema erótico, mas nunca deixando de ser um poema falso, fingido.